Onde se encontram histórias pouco sérias ocorridas (a sério!) nos tribunais. Este blog viveu, entre Dezembro de 2004 e Janeiro de 2006, das contribuições de quem o leu.

27.6.05

Transcrição, com a devida vénia.

do incursões
"Quinta-feira, Outubro 14, 2004
Brincar aos processos
É uma pequena mas reveladora história sobre o (mau) funcionamento da justiça penal:
um cidadão comprou num estabelecimento do Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, um pacote de leite, que, chegado a casa, percebeu estar estragado.
Apresentou queixa crime na Comarca de Lisboa.

Algum tempo depois, um ilustre e empenhado procurador despachou dizendo que a Comarca competente era a do Porto, por aí se situar a sede da empresa produtora do leite da marca que o pacote ostentava.
Chegado ao Porto o processo, com o pacote apenso, outro ilustre e não menos zeloso procurador entendeu, apesar de tudo, que a competência era da Comarca de Lisboa, tendo suscitado o competente conflito.
Cerca de um ano e meio depois, o conflito foi resolvido no sentido de atribuir a competência ao MP da Comarca de Lisboa, para onde transitaram de novo o processo e o pacote apenso.
O narrador não sabe qual o desfecho final de tão intrincado e bizarro caso.

Tem uma certeza apenas: o pacote vazio já não cheira sequer a azedo, tresanda a inoperância e brincadeira de duvidoso gosto.
posto por Tomas"

17.6.05

Alagoas, 1833

Esta sentença circula por correio electrónico. Supostamente, a fonte é o Instituto Histórico de Alagoas. Será? Sin non e vero...

"O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de tocaia em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará.
Elle não conseguiu matrimónio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante.
Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.

CONSIDERO:
Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana;
Que o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;
Que Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.

CONDENO o cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete.
A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.
Nomeio carrasco o carcereiro.
Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.
Manoel Fernandes dos Santos,
Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha
15 de outubro de 1833

14.6.05

Partidinha que foi longe demais

Ou talvez não fosse só uma partidinha.
Nos serviços do Ministério Público há muitos processos de pessoas que se queixam de que há quem lhe queira mal. Inimigos desconhecidos, lóbis poderosos, forças ocultas, entre outras mais imaginativas. Normalmente são queixosos insistentes, incómodos, aborrecidos e repetitivos. Em regra, revelam paranóias.
Neste caso, parecia cumprir-se a regra. O denunciante queixava-se de que havia quem lhe queria fazer mal.


Porém, passou a haver dúvida - e séria -, depois do seu depoimento, no qual disse que tinha “sempre em cima da sua secretária, no seu gabinete, uma garrafa de água para beber, que costuma encher na casa de banho”. Entretanto, um dia, ao chegar, a garrafa caiu no chão e provocou danos. O denunciante logrou conseguir que fosse analisada a respectiva água e afirmou que “de acordo com o resultado da colheita (…) tratava-se de um ácido muito forte, uma vez que misturado com a água continuava a ter um PH baixo, menor que 2. Esclarece que tal substância diluída na água é incolor, pelo que se porventura tivesse ingerido o líquido da garrafa teria ficado todo queimado por dentro e poderia ter morrido.”

Posted by Hello

4.6.05

Código dos cães

Quando o Código Penal Português foi publicado, em 1982, revogando um seu antecessor do século XIX, este diploma de estrutura moderna suscitou muitas críticas dos velhos do Restelo dos tribunais, a quem não apetecia ter que comprar o novo livrinho e muito menos estudá-lo.
As críticas ao novo Código foram surgindo, umas mais pertinentes que outras.

A mais original foi aquela que dizia que este novo código era o código dos cães.
Como, perguntava-se?
A anedota era simples. No articulado, na descrição dos tipos de crime, a generalidade deles começa por “quem”: “quem matar outra pessoa…”, “quem praticar acto sexual de relevo…”, “quem injuriar outra pessoa…”, “quem tomar parte em motim…”, “quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimo…”. E assim acontece com 175 dos Artigos 131º a 386º, onde se descrevem os tipos de crime.
É o código dos quem’s.

2.6.05

Ai, as fórmulas!

O direito romano divulgou-se por toda a Europa medieval por via dos seus pequenos mas significativos brocardos. Nulla poena sine legge, sumum ius suma iniuria, quod era demonstrandum - et alter. Desde então, os juristas, mesmo os dos tempos modernos, temos dificuldade em expressar ideias sem recorrer às frases feitas. Mas por vezes, esta prática prega partidas.

Foi o que aconteceu com um diligente agente da PJ, que interrogava um arguido suspeito de falsificar as matrículas de um veículo que tinha furtado. O arguido confessou e o diligente agente registou na súmula do seu depoimento, no auto de interrogatório, que “foi o próprio declarante quem falsificou a matrícula, com o seu punho”.